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Sonhar é preciso, nem que for sonho de padaria...

Nem uma coisa nem outra, o que há entre elas é o que me encanta

sexta-feira, 2 de julho de 2010

ELA...


Quando tinha menos de dez anos, ela pensou que podia sonhar em pintar quadros: árvores, sóis, pessoas e aquele cheiro de tinta a óleo que impregnava todo o dezembro.
          Um resto quadrado de compensado tornou-se uma tela gigante. Uns restos de tinta nas latas vazias, deixadas de lado, transfiguraram-se em divinas aquarelas e os pincéis próprios para as laterais das janelas, na arma do que viria a ser um pensamento infantil estampado naquele atelier que a vida lhe havia improvisado.
          Ali nascia um sonhozinho com qualquer coisa de pegada artística. As cores e a textura das tintas é que não colaboravam muito.
          Era um azul esverdeado, ou verde azulado que não se destacavam muito bem naquele tom marrom do compensado. Era muito sem graça.
          Bom, desta idade, sairam-lhe da cabeça e pousaram naquele resto de madeira, qualquer coisa, como algumas nuvens, duas árvores, um sol tímido e pessoas. Tudo meio pálido, tudo meio sem tom nenhum, que só existiam pela firmeza dos traços fortes e largos, que aproveitando a disponibilidade do pincel esquecido nas latas vazias, superavam a apatia daquelas cores sem cor que gritavam por atenção. Qualquer uma. Só atenção...
          Este episódio das tintas, assim como tantos outros, passaram. Perderam seu tempo e passaram. Outros viriam, como de fato vieram, para contribuir com aquela pseudo infância daqueles mais que reais sonhos de menina.
          Foi assim também com a história da bicicleta que ela queria tanto ganhar pra poder ir até à quarta-série exibi-la.
          Este sonho já era mais sofisticado, porque além da bicicleta, haveria a necessidade de uma corrente com cadeado e aí o sonho se complicava. A bicicleta, já era quase favas contadas, que seria a do irmão mais velho. Bastava uma pintura verde esmeralda pra ficar novinha em folha. Mas o cadeado com a corrente teriam que ser comprados...
          Bom, lembro-me que ela propôs uma troca de necessidades. Seu pai necessitava dos sapatos engraxados toda semana e ela necessitava da bicicleta com o cadeado. E não é que a proposta foi aceita.
          Bom, de fato teve que esperar por quase um ano, que foi o tempo combinado.(Olha o indício de que nada lhe seria muito fácil) Mas valia a pena, afinal, era uma bicicleta recondicionada, verde, com cadeado e tudo que estava em jogo, e afinal, com a potência daqueles sonhos todos, ela com certeza (a bicicleta), levantaria vôos... E assim o foi.
          Depois de um ano engraxando os sapatos, lustrando-os e ainda de quebra, fazendo cafuné e penteados na cabeça do pai, (todos os dias depois que ele chegava do serviço e sentava-se na sua poltrona), finalmente a bicicleta com cadeado, corrente e tudo, era sua! E por mérito!
          Agora era só voar até à quarta-série e estacionar no pátio, à vista de todos, aquela que seria o início de suas conquistas ingênuas. O primeiro tijolo a ser posto como exemplo de sua força de potência.
          Tão ingênua a vontade de ter uma bicicleta para ir à escola, que esforços não foram medidos para esta conquista. Nem mesmo com o empecilho do cadeado.
          Graça e coragem estão e são intrínsecos à ingenuidade infantil, tão intrínsecos que torna-se quase impossível saber onde começa um e onde termina o outro.
          O que muitos chamam de coragem, pode ser uma dessas vontades infantis que ficam séculos incubados em nós, que de tanto querer, acabam se realizando, quase independente de nós.
          Estaria a fortaleza da criança, pondo por terra toda a certeza do adulto? Talvez seja neste ponto que a vida flui, diria até, que a partir daí,a vida passa a existir de fato em uma realidade que quase independe de outras coexistências.
          Talvez que valha nesta esfera seja de fato a força dos sonhos e sua existência, que só têm valor quando reconhecidos e só são reconhecidos quando de fato são fortes o suficiente para romperem os invólucros que insistem em nos imprimir no decorrer de nossas andanças e que muitas vezes, nem nos pertencem.
          Ainda bem que criança tem uns olhos visionários, não tem muito pudor e nunca mente, apenas fantasia, vez ou outra. Penso ser esta é a arma mais eficaz contra a pasmaceira da superficialidade que hora após hora tenta sufocar-nos as vontades, os prazeres, os sonhos... e até os indícios de vida que restaram em nós e que gritam por ressurreições diárias...

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